Charles Baudelaire

Carta ao Sr. Diretor da Revue française sobre o Salão de 1859 [20/06/1859]

Meu caro Morel, se houvesse tempo para diverti-lo, eu o conseguiria facilmente folheando o catálogo e fazendo um apanhado de todos os títulos ridículos e temas patéticos que têm a ambição de atrair nossos olhos. Esse é o espírito francês. Tentar surpreender através de estratégias estranhas à arte em questão é o grande instrumento de pessoas que não são naturalmente pintores.

Por vezes, mas sempre na França, esse vício atinge até mesmo homens que não estão desprovidos de talento, mas que o desonram através de uma espécie de mistura adúltera. Eu poderia fazer desfilar sob seus olhos o título cômico à maneira dos vaudevillistas[1], o título apelativo ao qual falta apenas o ponto de exclamação, o título trocadilho, o título profundo e filosófico, o título enganador, ou título armadilha, do gênero Brutus, Largue César[2]! “Oh estirpe incrédula e pervertida! diz Nosso Senhor, até quando estarei entre vós? Até quando vos suportarei?”[3] Efetivamente, essa estirpe, artista e público, tem tanta fé na pintura que tenta incessantemente disfarçá-la e dar-lhe um invólucro como um remédio amargo dentro de uma cápsula de açúcar; e que açúcar, grande Deus! Eu lhe apontarei apenas dois títulos de telas que, aliás, não cheguei a ver: Amor e Gibelotte[4]! Como a curiosidade vira imediatamente apetite, não é mesmo? Eu tento combinar intimamente essas duas idéias, a idéia de amor e a idéia de um coelho esfolado e feito picadinho. Não me foi possível supor que a imaginação de um pintor tenha chegado ao ponto de combinar um aljava, asas e uma venda[5] sobre o cadáver de um animal doméstico; realmente, a alegoria seria demasiadamente obscura. Mais que isso, creio que o título foi composto segundo a receita de Misantropia e Arrependimento[6]. O título verdadeiro seria então: Pessoas apaixonadas comendo gibelotte. Agora, são eles jovens ou velhos, um operário e uma costureirinha ou mesmo um inválido e uma vagabunda sob um caramanchão empoeirado? Seria preciso ter visto o quadro. – Monárquico, Católico e Soldado! Este é do gênero nobre, do gênero paladino, um itinerário de Paris a Jerusalém (Chateaubriand, perdão![7] As coisas mais nobres podem se transformar em meios de caricatura, e as palavras políticas de um governante, em munição para aprendizes de arte). Esse quadro só pode ser a representação de alguém que faz três coisas ao mesmo tempo, batalha, comunga, e assiste ao petit lever[8] de Luis XIV. Será talvez um guerreiro tatuado com flores de lis[9] e imagens de devoção? Mas para que complicar?

Digamos simplesmente que esse é um meio de comoção, pérfido e estéril. O que há de mais deplorável, é que o quadro, por mais esquisito que pareça, talvez seja bom. Amor e Gibelotte também. Sem falar de um excelente e pequeno grupo de esculturas cujo número infelizmente não guardei, e quando eu quis saber mais sobre o tema, reli insistente e infrutiferamente o catálogo. Enfim, você teve a generosidade de me informar que se chamava Sempre e Jamais. Eu me senti sinceramente aflito ao ver que um homem talentoso cultivou inutilmente um enigma desse tipo[10].

Peço desculpas por ter me divertido por alguns instantes à maneira dos pequenos jornais. Mas, ainda que a temática lhe pareça um pouco frívola, no entanto, examinando-a bem, você encontrará nela um sintoma deplorável. Para resumir de um modo paradoxal, eu lhes perguntaria, a você e a esses meus amigos que são mais instruídos que eu na história da arte, se o gosto pelo tosco, o gosto pelo espirituoso (que são a mesma coisa) existiram em outros tempos. Se Apartamento para alugar[11] e outras concepções rebuscadas surgiram em todas as épocas para incitar o mesmo entusiasmo. Se a Veneza de Veronese e de Bassan foram afligidas por esses logogrifos, se os olhos de Jules Romain, de Michelangelo, de Bandinelli foram assombrados por semelhantes monstruosidades; pergunto, em resumo, se o Sr. Biard é eterno e onipresente como Deus. Não creio nisso, e considero essas honras como uma graça especial concedida à estirpe francesa. Que seus artistas inoculam nela o gosto, é verdade; que ela exige deles que lhe supram tal necessidade, também não é menos verdadeiro; pois se o artista embrutece o público, este lhe paga bem por isso. São dois termos correlativos que agem um sobre o outro com igual eficiência. Admiremos também com que rapidez mergulhamos na via do progresso (entendo por progresso a progressiva desaparição da alma e o progressivo domínio da matéria), e que propagação maravilhosa se faz todos os dias da habilidade ordinária, aquela que se pode adquirir através da paciência.

Neste país, a pintura naturalista, assim como o poeta naturalista, é quase um monstro. O gosto exclusivo pelo Verdadeiro (tão nobre quando limitado a suas verdadeiras aplicações), neste caso, oprime e sufoca o gosto pelo Belo. Onde seria preciso ver apenas o Belo (eu penso numa bela pintura, e pode-se facilmente adivinhar o que estou imaginando), nosso público busca apenas o Verdadeiro. Ele não é artista, naturalmente artista; filósofo, talvez; engenheiro, amante de anedotas instrutivas, tudo que se queira, mas jamais espontaneamente artista. Ele sente, ou melhor, julga sucessivamente, analiticamente. Outros mais favorecidos sentem de imediato, de uma só vez, sinteticamente.

Havia pouco, eu falava de artistas que buscavam surpreender o público. O desejo de surpreender e de ser surpreendido é bastante legítimo. It is a happiness to wonder, “é a felicidade de ser surpreendido”; mas também, it is a happiness to dream, “é a felicidade de sonhar”[12]. Se for necessário conferir o título de artista ou de amante das belas-artes, a questão é de saber por quais procedimentos se deseja criar ou sentir surpresa. Se o Belo é sempre surpreendente, seria absurdo supor que o que é surpreendente é sempre belo. Ora, nosso público, que é particularmente incapaz de sentir a felicidade da fantasia e da admiração (um sintoma das almas pequenas) quer ser surpreendido por meios estranhos à arte, e os artistas obedientes se conformam a esse gosto; eles querem chocar, causar espanto, pasmar por estratagemas indignos, porque sabem que o público é incapaz de se extasiar diante da tática mais espontânea da verdadeira arte.

Nestes dias deploráveis, produziu-se uma nova indústria que muito contribuirá para confirmar a idiotice da fé que nela se tem, e para arruinar o que poderia restar de divino no espírito francês. Essa multidão idólatra postulou um ideal digno de si e apropriado à sua natureza, isso está claro. Em matéria de pintura e de escultura, o Credo atual do povo, sobretudo na França (e não creio que alguém ouse afirmar o contrário) é este: “Creio na natureza e creio somente na natureza (há boas razões para isso). Creio que a arte é e não pode ser outra coisa além da reprodução exata da natureza (um grupo tímido e dissidente reivindica que objetos de caráter repugnante sejam descartados, como um penico ou um esqueleto). Assim, o mecanismo que nos oferecer um resultado idêntico à natureza será a arte absoluta”. Um Deus vingador acolheu as súplicas desta multidão. Daguerre foi seu Messias. E então ela diz a si mesma: “Visto que a fotografia nos dá todas as garantias desejáveis de exatidão (eles crêem nisso, os insensatos), a arte é a fotografia”. A partir desse momento, a sociedade imunda se lança, como um único Narciso, à contemplação de sua imagem trivial sobre o metal. Uma loucura, um fanatismo extraordinário se apodera de todos esses novos adoradores do sol. Estranhas aberrações se produzem. Associando e reunindo homens desajeitados e mulheres desavergonhadas, afetados como os açougueiros e as lavadeiras no carnaval, pedindo a seus heróis que continuem a fazer suas caretas de circunstância pelo tempo necessário à tomada, eles se lisonjeiam de oferecer cenas, trágicas e graciosas, da história antiga. Algum escritor democrata deve ter aí visto um modo, com baixo custo, de restituir ao povo o gosto pela história e pela pintura, cometendo assim um duplo sacrilégio, insultando a divina pintura e a arte sublime do ator. Pouco tempo depois, milhares de olhos ávidos se voltavam para o orifício do estereoscópio, como uma fresta para o infinito. O amor pela obscenidade, que é tão vivaz no coração natural do homem quanto o amor por si mesmo, não deixou escapar tão bela ocasião para satisfazer-se. E que não se diga que se trata de crianças que retornam da escola e encontram nessas besteiras seus prazeres; pois elas deslumbraram a todos. Eu ouvi uma bela senhora, uma mulher da alta sociedade, não da média, responder àqueles que discretamente lhe escondiam imagens desse tipo, zelando por seu pudor: “Mostre-me tudo, não há nada demasiado forte para mim”. Juro ter ouvido isso, mas quem acreditará? “Veja você que se trata de mulheres grandiosas!” disse Alexandre Dumas. “E há outras ainda maiores!” disse Cazotte.
Como a indústria fotográfica foi o refúgio de todos os pintores fracassados, demasiado mal-dotados ou preguiçosos para acabar seus estudos, esse deslumbramento universal teve não somente o caráter de cegueira e imbecilidade, mas também, a cor de uma vingança. Que uma tão estúpida conspiração, dentro da qual, como em todas as outras, encontramos os perversos e os equivocados, possa vencer de maneira absoluta, eu não acredito, ou pelo menos não gostaria de acreditar; mas estou convencido de que o progresso mal aplicado da fotografia muito contribuiu, como aliás todo progresso puramente material, para o empobrecimento do gênio artístico francês, já tão raro. A Fatuidade moderna rugirá forte, fará roncar todas as flatulências de sua obesa personalidade; vomitará todos os sofismas indigestos que uma filosofia recente lhe serviu até que se empanturrasse, o que torna evidente que a indústria, irrompendo-se dentro da arte, torna-se sua mais mortal inimiga, e que a confusão de funções impede que ambas realizem seus potenciais. A poesia e o progresso são dois ambiciosos que se odeiam de um ódio instintivo, e quando se encontram no mesmo caminho, é necessário que um sirva ao outro. Se for permitido à fotografia substituir a arte em qualquer uma de suas funções, ela logo será totalmente suplantada e corrompida, graças à aliança natural que encontrará na tolice da multidão. É preciso então que ela retorne ao seu verdadeiro dever, que é o de ser a serva das ciências e das artes, a mais humilde das servas, como a imprensa e a estenografia, que nem criaram e nem suplantaram a literatura. Que ela enriqueça rapidamente o álbum do viajante e devolva a seus olhos a precisão que faltava a sua memória, que ela ornamente a biblioteca do naturalista, amplie os animais microscópicos, ou mesmo, que ela acrescente ensinamentos às hipóteses do astrônomo, que ela seja enfim a secretária e o guarda-notas de quem quer que precise, em sua profissão, de uma absoluta precisão material, até aí, nada melhor. Que ela salve do esquecimento as ruínas decadentes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, as coisas preciosas cuja forma irá desaparecer e que pedem um lugar no arquivo de nossa memória, ela terá nossa gratidão e será ovacionada. Mas se lhe for permitido usurpar o domínio do impalpável e do imaginário, de tudo aquilo que apenas tem valor porque o homem lhe acrescenta alma, então, que desgraça a nossa!

Sei que muitos me dirão: “A doença que você acaba de explicar é aquela dos imbecis. Que homem digno do nome de artista e que diletante verdadeiro confundiu um dia a arte com a indústria?” Eu sei e, no entanto, perguntarei por minha vez se ele acredita no contágio entre o bem e o mal, na ação das multidões sobre o indivíduo, e na obediência involuntária, forçada, do indivíduo à multidão. Que o artista aja sobre o público, e que o público reaja sobre o artista, é uma lei incontestável e irresistível; no mais, os fatos, terríveis testemunhos, são fáceis de conhecer; podemos constatar o desastre. Dia a dia, a arte perde o respeito por si mesma, se prosterna diante da realidade exterior, e o pintor se torna cada vez mais inclinado a pintar, não o que sonha, mas o que vê. Entretanto, é uma felicidade sonhar, é uma glória exprimir o que se sonha, mas o que direi? Você ainda conhece essa felicidade? Afirmará o observador de boa fé que a invasão da fotografia e a grande loucura industrial não estejam ligadas a esse resultado deplorável? Será possível supor que um povo, cujos olhos se habituaram a considerar os resultados de uma ciência material como produtos do belo, não terá, ao largo de certo tempo, particularmente diminuída sua faculdade de julgar e de sentir o que há de mais etéreo e de mais imaterial?

Charles Baudelaire, 1959
[Tradução e comentários: Ronaldo Entler, 2007]

Comentários:

  1. 1- Vaudeville é um tipo de comédia teatral popular, surgida na França em meados do século XVIII, e que se difundiu pelo mundo no século XIX.
  2. Brutus, lâche César” é uma comédia escrita por Joseph-Bernard Rosier, em 1849. Apesar da aparente referência histórica do título, Brutus é, nessa peça, apenas um cão que morde um porteiro chamado César.
  3. Citação ao Evangelho de Mateus, Cap.XVII, V. 17.
  4. Título de uma obra de Ernest Seigneurgens, exposta no Salão. Gibelotte é um prato da culinária francesa, espécie de fricassé de coelho preparado com vinho branco.
  5. Baudelaire imagina ironicamente uma obra alegórica com elementos que aparecem em certas representações do Amor como personagem mítico (Cupido) : a aljava, suporte em que as carrega as flechas, asas e, por vezes, uma venda em seus olhos.
  6. Peça de August von Kotzebue, de 1790, tido por alguns historiadores como precursora do melodrama. Baudelaire se refere, provavelmente, à literalidade das palavras implicadas.
  7. Baudelaire faz referência aos cavaleiros (por vezes chamados de paladinos) que acompanhavam Carlos Magno nas cruzadas. Em seguida, apela a Chateaubriand, autor de “O gênio do cristianismo” (1802) que, na contracorrente do iluminismo, busca resgatar o valor moral e estético das ações ligadas à tradição e à história do cristianismo.
  8. Primeira etapa de um pomposo cerimonial de despertar do rei, envolvendo uma vasta hierarquia de funcionários e súditos, que realizam uma seqüência de pequenas tarefas.
  9. Figura heráldica usada recorrentemente para representar da monarquia francesa.
  10. Na carta enviada a Nadar em 16/05/1859, Baudelaire também comenta estas esculturas com empolgação, apelando ao amigo para que tentasse obter informações sobre o título.
  11. Quadro de François-Auguste Biard, sucesso no Salão de 1844. Cf. Roubert.
  12. As frases em inglês são extraídas do conto “Morella”, de Edgar Allan Poe. Com este “mas também”, Baudelaire quer provavelmente dizer “mas não esqueçamos também”. Mais adiante, Baudelaire voltará a falar da “felicidade de sonhar”, a seu ver, escassa em seu tempo.

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